Marcelo Armani
“A paisagem sonora é um museu a céu aberto e não tem como confinar em quatro paredes e botar num acervo”
A seguinte entrevista foi realizada em 18/04/2016 em São Paulo.
Rui Chaves: A primeira coisa, eu gostaria que tu falasses um pouco sobre o teu percurso, como é que tu chegaste na arte sonora…
Marcelo Armani: Eu vou falar horrores, porque se tu me dá ouvidos… (risos) Eu acho que antes de entrar no campo da arte sonora e entrar em conceitos e toda essa coisa que a gente vê bastante nas artes, o meu primeiro contato foi sonoro, os primeiros contatos que eu tenho da minha infância são inteiramente sonoros… uma porque eu nasci no interior do Rio Grande do Sul, uma cidade que chama Carlos Barbosa, que é a cidade que fabrica os talheres Tramontina, e só tem Tramontina naquela cidade, meu pai chegou a trabalhar lá… agora eu acho que toda a população ou trabalha na Tramontina ou trabalha indiretamente pra ela… Não sei por que chama Carlos Barbosa a cidade… e a gente tinha fogão a lenha, porque lá no interior do RS é muito frio, né, não chega a ser um frio europeu, mas fazia lá seus -5°C, -3°C, então, eu venho de família italiana e a gente tinha fogão a lenha (…) cada estalo da madeira no fogo era algo que me chamava a atenção e eu molhava algumas pontas pra ouvir o ‘tsssssssss’, então tinha todo um ‘fade in’, tinha um ‘fade out’, tinha uma espacialidade sonora do fogo, e eu tinha uns 3, 4 anos e eu lembro disso, é muito forte. Tinha um abajur velho também, que eu gostava da textura do tecido do abajur que eu ficava raspando o dedo no abajur. Depois disso a gente se mudou pro interior, pra uma outra cidade do interior e os meus pais começaram a trabalhar com agricultura (…) o que me chamava atenção era sempre o temporal, quando dava tempestade, tempestade no campo é uma outra viagem, não é essa que acontece aqui, porque tu escuta o trovão, tu escuta os graves, tu sente os graves, então começou desde a minha infância, passando por esse processo em casa, depois no campo, depois a gente se mudou pra Porto Alegre, na verdade pra Canoas, que é a região metropolitana de Porto Alegre, só que Canoas é cidade mais industrial, é como se fosse o ABC Paulista, tem muitas indústrias, tem uma refinaria de petróleo, é cidade dormitório… e a gente se mudou em 86 se eu não me engano, que era na época que estavam instalando o metrô, que é um trem, mas eles chamam de metrô lá, é um metrô de superfície, e imagina, tu sai do estalo madeira, do trovão e tu cai numa escada rolante e o ranger do ferro, do trilho, cara, isso mudou a minha vida! Até hoje, o que eu adoro gravar é metrô, sabe? E tempestade. (…) Aí em Canoas, pólo industrial e tal, aí década de 90 eu caí no punk, eu cheguei no punk rock, comecei a tocar bateria, muito influenciado pelo meu avô também, que ele tocava acordeom, bateria e ele era meio inventor, ele queria fazer um instrumento que tocasse tudo (risos), é desses gringo maluco que jogam dentro do navio, sabe? Ele era assim… e ele chegou a fazer um instrumento que ele tocava castanhola, tocava gaita com a mão, não sei o que com o pé, cara, ele era doido! (risos) E acho que a parte mais musical veio dele, porque quando eu era recém nascido, minha mãe teve tétano e meu pai trabalhava, então eles chamavam meu avô pra ficar comigo o dia inteiro, então ele me colocava numa perna e na outra o acordeom e meu ouvido só escuta acordeom (risos), mas aí eu conheci punk rock, tal, pós-punk depois, e eu comecei a tocar bateria com 14 anos, e aí nesse momento eu entrei mais na parte musical e tinha umas bandas de pós rock tocando pra cá, pra lá… em 2007 a banda acabou, por questões de que eu estava fazendo mais pesquisa com ruído, com noise…(…) nessa época eu já tinha descoberto Stockhausen, John Cage, Daphne Oram, esse povo, não cheguei ainda na galera da arte sonora…
Rui Chaves: Mas como é que tu chegaste a esse pessoal? Foi por pesquisa pessoal ou…
Marcelo Armani: Foi… cara, quando eu caí na arte sonora, foi muito engraçado, porque eu passei a trabalhar de 2007 até 2011, eu trabalhei muito com improvisação eletroacústica sem saber que era eletroacústica, eu me intitulava ‘músico improvisador’ e ‘músico experimental’, músico experimental hoje qualquer cara que toca guitarra com bossa nova se intitula músico experimental (risos), então eu tinha isso muito vivo da improvisação, eu toquei muito com um pessoal da Argentina e do Chile, esse pessoal me apresentou a eletroacústica, então eu me dei conta de que o que eu tava fazendo era improvisação eletroacústica, mas até então era essa eletroacústica mista, então eu processava efeitos sobre bateria, que era o instrumento que eu dominava, alguns instrumentos de percussão, como o berimbau, eu estragava o berimbau, como alguns músicos dizem, e eu adorava, tocava o berimbau com arco e delay (risos) (…) em 2011 eu fui pra Buenos Aires pra tocar e por casualidade tava acontecendo o Tsonami e e me inscrevi em 3 oficinas, e aí fiz uma do Rodrigo Sigal, que eu não fazia ideia de quem era nenhum deles, o Manuel Rocha Iturbide e o Marco Scarassatti – a parada com o Marcos era mais improvisação, o Rodrigo Segal era composição eletroacústica e o Manuel Rocha Iturbide era sonora pura…
Rui Chaves: Esse Manuel Rocha Iturbide é da onde?
Marcelo Armani: Manuel Rocha Iturbide, ele é mexicano.
Rui Chaves: Já ouvi falar dele… ele é compositor também, não é?
Marcelo Armani: Ele é compositor eletroacústico, mas ele trabalha com arte sonora, com exposição, instalação… O Rodrigo Sigal ele é mais compositor eletroacústico mesmo. Eu tinha oficina com o Rodrigo de manhã, na primeira hora da manhã, e depois com o Manuel Rocha, mas esses dois caras foram muito importantes, foi nesse momento que aconteceu uma virada no meu ouvido, e eu entendi… é muito engraçado, porque com o Sigal eu aprendi a ouvir e a compor, mesmo numa oficina de poucos dias, eu até nem fui todos os dias, porque eu tive que voltar, eu já tinha passagem comprada, mas eu fiz uns três dias de oficina, e como o Manuel acho que foi um cara que quando eu participei da oficina dele eu percebi que o que a gente faz com projeção eletroacústica é arte sonora e é muito mais legal tu fazer como exposição e instalação, porque ela toca durante 30 dias numa galeria, essa era a minha viagem, a minha viagem era que ‘cara, por que eu vou tocar uma hora…
Rui Chaves: … quando eu posso transpor isso pra outra realidade, que me permite atingir outra liberdade, né?
Marcelo Armani: Total! Só que nesse momento, eu não sabia nada de Duchamp, por exemplo, não tinha essas outras relações com Deriva, com Debord, eu não sabia nada desses filósofos, que são muito utilizados pra embasar um conceito em artes visuais, e eu não sabia nada, a minha viagem era essa, era o som no lugar, então quando eu voltei de Buenos Aires, em maio de 2011, já no avião eu comecei a pensar num processo de instalação sonora…
Rui Chaves: Estavas interessado em sair do concerto e ir para a galeria, que esse salto já é muito mais legal do que…
Marcelo Armani: Já é muito mais legal, porque eu já sabia como fazer, porque eu gravava em casa, fazia edição em casa, com o Adobe Audition, lançava na internet, fazia essas viagens, então a parte da edição eu já tinha e o resto era dar asas pro cérebro; quando eu retornei de Buenos Aires pra Porto Alegre eu comecei a pensar num projeto de instalação, que é um projeto que chama tranS(obre)por, que é um projeto que eu colo fios vermelhos na parede e esse foi meu primeiro projeto. Quando eu cheguei em Porto Alegre, eu recebi um convite do pessoal lá de Porto Alegre pra expor, pra participar de uma exposição que abria em julho de 2011, e eu falei pra mulher que tava organizando que eu tinha um projeto e era uma mostra coletiva, ninguém tinha alto-falante (risos), nem fone de ouvido tinha e naquela época eu ainda usava muito de mapeamento sonoro… hoje eu não gosto de usar muito a palavra mapeamento, porque eu acho que é meio egocentrismo tu dizer ‘ah, esse é o som desse lugar’, é um fragmento, é um recorte, que não é o som do lugar, que vai depender do microfone, de uma série de coisas e o ouvido da gente é neutro, não adianta tu querer se sobrepor a natureza, o som faz parte da natureza, eu acredito nisso, e desse fluxo de pensamentos que as pessoas transitam constantemente, aí tu já entra num outro plano que é muito mais antropológico e social, a arte sonora e o mapeamento sonoro, eles se dissolvem completamente quando a gente começa a olhar isso por um outro olhar, por esse olhar mais social (…) esse tranS(obre)por foi meu primeiro projeto e aí naquela época eu brincava muito com essa história de mapeamento, só que eu já tinha uma viagem que eu queria que as pessoas percebem o som do local, eu não queria só alto-falante e paisagem sonora, eu queria que elas tivessem a percepção visual, então eu trabalhava com impressão fotográfica…
Rui Chaves: E o que é legal no seu trabalho é o elemento visual que está a coroar a escuta ou a expandir aquilo que tu estás a apresentar.
Marcelo Armani: A questão visual dele funciona como esses papéis que a gente chamava de papa mosca, esses papéis com cola que a mosca pousa e não sai mais, ou essas luzes pra matar mosquito que atrai pela visão, então a questão visual do trabalho ela é muito forte, porque eu quero que as pessoas entrem pra depois poderem navegar pela via sonora…(…)Tu tem uma minhoca e um anzol, né (risos). É óbvio que tem outros conceitos por trás disso, mas singelamente o primeiro conceito é esse (…) eu pego elas pela visão, então na época eu pegava essas impressões feitas com o Google Maps ou Google Earth, então eu meio que selecionava o ponto de onde eu tava captando e imprimia esse mapa; hoje eu já fui pra abstração, já não me interessa mais o mapa, o que me interessa…
Rui Chaves: É mais o trajeto, aquilo que tem a ver com o trajeto?
Marcelo Armani: …o que me interessa é a foto do momento da captação do áudio, então o mapa caiu e entrou, vamos supor, a gente tá gravando esse copo, tiro uma foto do copo e gravar com o microfone de contato, porque vai ficar mais legal (risos), então algumas vezes o equipamento sempre aparece, nesse trabalho né, tu tem um microfone, um boom, um gravador, ou um microfone de contato ou tu tem só a paisagem mesmo, quando eu trabalho com microfone condensador eu uso só a paisagem, as pessoas têm que entender que a gente tá usando o microfone
…
Rui Chaves: Porquê que é importante o material não estar escondido?
Marcelo Armani: Eu acredito que o equipamento entra numa situação de performance, e a gente pode brincar com aquela história do som indireto, no cinema tu nunca vê o boom, né? É uma coisa que tem que ficar escondida, e nesse trabalho não, nesse trabalho o visual ele é uma partezinha pequena, o que vale é o sonoro, então o equipamento tem que aparecer, até pras pessoas começarem a se familiarizar, começar a entender como são feitas essas captações(..).Eu gosto de deixar o equipamento a vista até pra fazer essa ligação, sabe? ‘ah, então isso que a gente tá escutando é dessa foto, porque tem um gravador, tem um microfone’, então tu cria esse elo, é mais uma forma de fazer com que as pessoas se aproximem mais dessa paisagem sonora, entendeu? Porque a paisagem sonora é um museu a céu aberto e não tem como confinar em quatro paredes e botar num acervo, tu pode, ok, ela vira um dado histórico, mas esses passeios sonoros que as pessoas fazem é lindo, é lindo, só que aqui no Brasil já é mais difícil, porque a gente tem que começar de pouco, passo a passo, e o que eu sinto é que num primeiro momento esse trabalho consegue fazer essa ligação; lá em Belo Horizonte agora teve uma história de um cara da galeria que trabalha com cerâmica, um dos funcionários que trabalha no Palácio das Artes, o cara trabalha com cerâmica, ponto, e ele participou muito do processo (…)ele saiu um dia e depois o coordenador das galerias chegou e falou comigo ‘Marcelo, o Paulo chegou ontem pra nós e falou que ele começou a prestar atenção nos sons da viagem que ele faz do Palácio das Artes pra casa dele no ônibus e ele se impressionou com coisas que passavam, o som da roleta, das moedas, essas coisas…’, cara, isso já valeu todo o trabalho! E ele já veio no outro dia dizendo que teve uma ideia que queria criar uma cerâmica com som, mais um!!! (risos) Então é isso que eu acho que tá funcionando, primeiro tu pega a pessoa no lado visual e depois tu mostra pra ela a paisagem, não é só ligar o microfone na rua, a gente como compositor, a gente sabe porque aquele fragmento tá ali, porque esse tem que ser deslocado, porque esse tem que ter efeito e esse não, sabe? E aí no processo de composição já atua outra coisa, é mais uma consciência social, mais política, porque pela atual situação que o país tá passando é inevitável que tu se posicione…
Rui Chaves: Acredito que por estares na rua, tu te deparas com isso, tu não queres, mas isso te apanha, ao navegar pela cidade, ver essa tensão, esse conflito entre as pessoas, isso é muito fácil…
Marcelo Armani: É, é cidade, a paisagem sonora é isso, eu uso, a gente trata as manifestações como paisagens sonoras do momento – em Belo Horizonte aconteceu uma coisa bizarra, porque eu tava numa manifestação pra fazer gravação de campo e tava ali gravando as coisas, até tem uma foto que é uma faixa, mas só aparece ‘bobo globo’ e os banheiros químicos, a ideia era brincar com os banheiros químicos, eu tô gostando de trabalhar com a questão da imagem e o título, principalmente o título, tanto é que o título dessa imagem era ‘Vazou um áudio’, que é uma coisa da política, e quando eu tava fazendo essa foto, um morador de rua se aproxima de mim e olha pra câmera e ele perguntou se eu era da Record, eu falei ‘não, sou do avulso’, quando eu falei avulso ele tirou o olhar da câmera e olhou pros meus olhos e disse ‘como assim do avulso?’, aí eu expliquei ‘tiro foto pra mim, sozinho’, ele disse ‘tá, mas tu não tem equipe?’, eu disse ‘não, sou sozinho’ e ele disse ‘mas e aí, alemão? Tu tira bem foto?’, eu disse ‘ah, depende do modelo’, ele ‘então tá bom, vou posar aqui, tira uma foto minha’, aí eu tirei uma foto dele. Aí, resumindo a história, eu conheci a mulher dele, que a mulher dele tava num outro local e ele disse ‘vou te apresentar minha mulher que ela veio me resgatar, vamo ali’. Aí, eu fui e nesse espaço onde eles estavam tinha uma emissora de TV, a Bandeirantes, fazendo a gravação, e quando eles entraram ao vivo, o rapaz falou ‘ô alemão, tu tem tempo?’, e aí eu fiquei pensando ‘que pergunta mais boba a gente faz, né, o cara é um morador de rua, perguntando pra um artista, no meio de uma manifestação, se tem tempo? Óbvio que a gente sempre tem tempo, que pergunta sem noção né, a gente vê o nível que tá a coisa, os cara pergunta se os cara tem tempo’, eu disse que sim e ele disse ‘então vou te contar minha vida’, quando ele começou a me contar a vida dele, de morador de rua, a Bandeirantes entra ao vivo, uma equipe se posiciona na frente da câmera e começa a gritar ‘mídia golpista, mídia golpista’ e a massa inteira começa a gritar ‘o povo tá na rua, o povo tá na rua’ e o cara tá me contando a história de vida dele, tudo ao mesmo tempo; eu me arrepio, porque um ouvido tá escutando uma realidade e o outro ouvido tá escutando uma outra realidade, e aí eu percebi que o que ele me falava foi um golpe de realidade, depois que ele me falou eu perguntei ‘tá, e essa história aqui, essa mudança, entra Dilma, sai Dilma’, ele disse ‘cara, as mudanças não são feitas pra nós, as mudanças são feitas pra algumas pessoas e a gente acaba ficando com o que sobra de mudança’, então já bastou, eu desliguei o gravador e disse ‘valeu!’, fiquei uns 40 minutos conversando com ele, aí peguei o metrô, gravei umas coisas no metrô e fui pra casa, deu! (risos). (…)Essa história eu contei pro pessoal do educativo, porque sempre que eu trabalho com exposição, as primeiras pessoas a ter contato com a obra é o pessoal do educativo, eu faço questão de pegar todos os moleques, levar pra galeria, falar sobre o trabalho, falar sobre essa situação, explicar a situação de cada foto, explicar porque o áudio tem esse efeito ou não, no Itaú Cultural ano passado que eu fiz a edição 8 do tranS(obre)por tinha uma faixa também que era da manifestação e lá a sala era um retângulo, eu tinha dois canais do lado esquerdo e direito e dos canais na frente e nos fundos e tinha uma peça que eu expliquei ‘essa vocês tem que mediar dessa forma, quando tu entra na sala o que se escuta na lateral é o som da manifestação, as buzinadas, as cornetas…
Rui Chaves: Então a espacialização tem um simbolismo, certo?
Marcelo Armani: É, a gente brinca com arquitetura, a gente busca elementos da arquitetura, do espaço, pra potencializar algumas coisas, mas isso, num primeiro momento é só uma análise de arquitetura sonora, deixar um canal num lugar pra não condensar com o outro, pensar a audição em três dimensões, mas eu não sei que áudio vai vir e esse é um trabalho que eu gosto de fazer justamente por isso, tu tá na corda bamba…
Rui Chaves: Como é tua relação com a cidade? Tu tens áreas onde tu planejas gravar ou…
Marcelo Armani: Eu fujo de ponto turístico e quando eu utilizo ponto turístico é pra registrar muito mais a aglomeração ou processos de… muito relacionado com os funcionários… que nem, em Belo Horizonte tem dois pontos turísticos que eu gravei, tem o Mercado Central, que é extremamente turístico, como o mercado de São Paulo, e ou outro é uma feira que acontece na Augusto Pestana, que é a avenida em frente ao Palácio das Artes, que é uma feira de artesanato, só que justamente nesses dois lugares o que eu captei… óbvio, no mercado eu captei aquela massa sonora, porque era cara vendendo passarinho, pato, então era aquele som de pato misturado com uma senhora pedindo queijo… (risos) tenso! E tem um elevador, que o elevador ele funciona como um isolamento acústico, quando tu tá dentro do elevador tu não escuta nada, quando tu chega, que abre a porta, tu recebe aquele choque, então na instalação isso tá, essa que trabalha com o Mercado Central tem isso, começa tu não escuta quase nada, mas é o som do elevador descendo e abre a porta e todos os canais tocam, toca passarinho de um lado, toca uma senhora com carrinho de compra e o outro falando… e o que eu me preocupei com o Mercado Central foram essas relações, mas a hora em que o mercado fecha, que começa a descer as portas, as cortinas de ferro, isso é lindo, porque toca uma sirene ‘rrrrrrrrrr’, imagina o mercado, ele é grande, e todas fazendo isso, e uma de cada vez, umas fecham antes, outras depois, e as que fecham é isso, eles têm um sistema de áudio no mercado que informa que faltam dez minutos pra encerrar as atividades, então todo mundo começa a ir embora e eu fiquei lá, eu fui expulso (risos), então eu peguei o cotidiano dessas pessoas, o fechar as portas, o ir pra casa, funcionário dando tchau pro outro ‘tchau, Lu, tchau, Lu’, sabe? Isso é lindo! É Isso que me comove! E isso já não é mais paisagem sonora, isso já vai pra outro campo, que ele é sutil, esse ‘tchau, Lu, tchau, Lu’ ele é sutil, mas essa preocupação do ‘tchau’, ‘tudo bem’, e na feira o que eu gravei foram os caras desmontando a feira, então tem muito som de metálico, fechando as barracas, e isso a gente já joga um delay, um reverb e vem esse som mais diluído, então esse tipo de material eu gosto de trabalhar efeito, eu deixo ele puro, cru, algumas coisas puras, mas eu trabalho mais equalização, porque equalização eu tenho que trabalhar na sala, então outro processo desgraçado é esse, reverb pra sala natural é um inferno, então tu chega, abre o computador e testa só em dois canais primeiro e vai equalizando fragmento por fragmento; nesse último eu fiz muita captação no centro, de vendedores ambulantes, então são pequenininhos fragmentos da pessoa falando ‘olha a água, olha a água’, ‘cortar cabelo, cortar cabelo’, ‘bolsa, bolsa’, então tu tem que trabalhar essas coisinhas, é cansativo, mas é lindo, depois que o resultado tá pronto, então minha preocupação é essa, o trabalho é muito mais social…
Rui Chaves: E o resto da cidade, como é que tu…
Marcelo Armani: Eu vou caminhando (…) eu pego ônibus, porque… ônibus e metrô eu gosto de pegar, porque é aonde a coisa acontece… Aqueles ônibus mais velhos têm um barulho muito… de diesel, quase uma carroça, isso é legal… em Buenos Aires os ônibus são um caco, são antigos, então tu tem… cara, transporte público é incrível, então os primeiros fragmentos sempre são esses, sempre são, em ônibus e em metrô ou em praça, onde as pessoas se reúnem muito, porque aí eu sinto a cidade, eu sinto o sotaque dela, eu sinto a vibração, a batida, entendeu? E aí depois eu vou me embrenhando por outros lugares (…) a maioria dos meus trabalhos eles têm um viés político e social, tem alguns que trabalham mais questões da ditadura, mas são trabalhos que não é o olhar do torturado, mas é o olhar do filho do torturado ou do filho do desaparecido, porque na Argentina saiu há alguns anos que as pessoas que nasceram entre 76 e 80 poderiam ser filhos de… os pais poderiam ser os assassinos dos pais, porque o que aconteceu foi que teve muito militar que mandou matar o pai e a criança ficou, imagina crescer sem pai, mãe tio, porque a família foge, numa dessas a família foge, então tu tem um órfão, e essa criança passa a ser criada pelo (assassino)… aí tu imagina isso, eu sou de 78, então foi uma coisa que me deu um choque, então essa história desses filhos que descobrem que foram criados pelo assassino do pai (..) outra história de um amigo artista que eu conheci numa residência que eu fiz, que é de Moçambique, ele viveu a Guerra Civil de Moçambique, ele é um fotógrafo, Mário Macilau, e ele me narrando a história virou um trabalho, o trabalho é um balanço pra duas crianças, tem dois bancos, um banco é no chão, então tem dois sistemas de graves no balanço onde a criança senta e é só a frequência grave que faz o banco andar, o que está no chão, parece um siri, e o outro só vibra, e nos quatro pés do balanço, eu tenho um sistema estéreo que é só captação feita em praça: as crianças andando nos brinquedos, crianças com o pai e com a mãe andando de bicicleta, o cara vendendo algodão doce, e isso com um certo eco, então a gente acaba caindo numa questão do sonho…
Rui Chaves: Porque tu não chegas a aferir a história diretamente, não é?
Marcelo Armani: Isso! Porque o que me chamava atenção no relato tanto do Mário, quanto de alguns filhos de desaparecidos da Argentina e do Chile que eu tive algum contato, é que eles fazem tudo pelos filhos deles hoje, sabe? Então tu sente que eles têm uma lacuna de infância enorme, o pai não tá só levando o filho pra brincar, o pai tá brincando junto com o filho, e isso é uma coisa que me choca horrores, porque tu imagina ser tolhido de uma infância e tu, como pai, estar vivendo a tua infância a partir da infância dele, sabe? Isso era uma coisa que me chocou muito…
Rui Chaves: Fala-me do teu trabalho, o carne seca?
Marcelo Armani: É! Carne seca é comida pra escravo, né… Então no Rio Grande do Sul, que é o estado onde eu infelizmente vivo ainda… é um estado machista, preconceituoso, do século XVI ainda.. é legal, tu pega um avião de São Paulo e viaja pro século XVI (risos), não, a cidade é bonita, é agradável, mas o problema é essa consciência de tradicionalismo que permanece, e o RS tem uma coisa que chama Revolução Farroupilha, o povo adora isso, porque foi uma semana que o estado do Rio Grande do Sul se tornou independente do Brasil, do Império e montou um projeto, isso porque essa revolução farroupilha tá baseada num evento econômico, porque o império sobretaxou o charque brasileiro feito no Rio Grande do Sul, porque tu imagina, esse charque ele é feito pra escravos em Minas Gerais, fazenda de café e o açúcar, que mesmo que a gente estude separado, existe uma mistura, então imagina o que esses caras ganhavam de dinheiro com isso, vendendo comida pra escravo, então eles usam muito sal (…) o charque produzido no Uruguai e na Argentina entra forte do Brasil, porque ele não é sobretaxado, mais barato que o charque pratense, então começam a comprar muito charque do Uruguai e da Argentina e os fazendeiros em Pelotas ficam putos, porque tão perdendo dinheiro e resolvem fazer a revolução, que vem toda essa história, só que no meio da revolução, eles fazem um acordo com o Império e quem realmente lutava, porque imagina que o fazendeiro ia colocar o filho pra lutar, ele pegava o escravo dele e colocava pra lutar (…) então tinha um destacamento na revolução que chamava ‘os lanceiros negros’, então o fazendeiro dizia ‘se tu lutar pela revolução e for um lanceiro negro, tu vai ser um escravo livre’, então eles estavam em posição esperando, só que ninguém sabia que o acordo já tinha sido feito, já tinha acabado a revolução e deram com a língua nos dentes, disseram que os negros estavam em tal lugar, foram lá e… é conhecido como Batalha dos Porongos, e todos os negros são mortos sem saber da onde vem bala ou da onde vem faca, essa é a revolução heroica que o Rio Grande do Sul para por uma semana, assa boi, tem festividades, danças tradicionais, música gaúcha falando sobre prenda e machismo, escancarado, mas com um certo filtro e… o hino do RS tem uma parte que fala ‘povo sem virtude acaba por ser escravo, sirvam nossas façanhas a toda terra’, que façanhas, cara? É uma vergonha isso, é um extermínio! Então o trabalho começa aí, começa em fazer corpos de sal, então eu peço pras pessoas deitarem, eu faço o contorno, depois eu faço o volume; e o áudio ele é pensado como se fosse um travessia da África pra cá, então tem muita coisa de estalar de madeira, quando a gente abre e fecha porta de madeira, dobradiça… então a forma de eu pensar um navio negreiro e um porão, foi mais ou menos por aí, que aí a gente já entra numa questão de sonoplastia… foi muito microfone de contato nas dobradiças das portas lá de casa, depois leva pro software e estica, bota delay, pra criar a dita cuja da atmosfera (…) e o hino do RS tá em toda peça, mas tu percebe ele no final, porque ele tem um fade in bem longo e ele é bem esticado mesmo, ele tem uma massa que os mediadores da bienal perguntavam ‘o que é essa base? Parece umas cornetas do inferno…’, eu disse ‘esse é o hino do Rio Grande do Sul esticadinho…’ (risos), e no final ele aparece, sai o efeito e aí eu só uso essa parte do ‘povo sem virtude acaba por ser escravo’ e o escravo começa por todos os lugares, e aí eu lembrei da garota recitando Lord Byron, então é ‘slaves’ o tempo inteiro… eu uso essa parte que ela fala ‘slaves on the sea’ e isso vai trabalhando espacialidade, né, e é um canal no teto e um canal embaixo, são as vozes de Deus na terra…. esse trabalho deu um certo problema no Rio Grande do Sul por causa disso… lá a gente tem o CPG, que é o Centro de Tradições Gaúchas, tem isso em Nova Iorque, em Miami, é um saco isso, deve ter até na Sibéria (risos), quando forem pra Marte, a primeira coisa que vão botar é um CPG (risos) e tu vai nesses ligares pra aprender dança típica e… isso!…. É uma desgraça, é um evento do século XV… e a minha ideia era trazer pessoas do CTG pra ver a obra, eu falei com pessoas do educativo sobre isso e eu ia mediar a obra, só que a Bienal não quis, porra cara, é o momento! E é legal isso, o deslocamento de uma paisagem em outra, que isso foi uma coisa que eu percebi… e esse trabalho, a primeira vez que eu fiz foi em Moçambique e desde então eu não quis mais fazer ele, porque eu queria justamente que ele fizesse essa travessia da África pro Brasil, então sem querer ele fez essa travessia, por isso que tem esses sons de coisas de oceano, a ideia era mais ou menos essa, das paisagens…