A seguinte entrevista foi realizada a 30/03/2016
Rui Chaves: Eu queria que tu falasses um pouco do teu percurso… Eu sei que tu tiveste uma banda e também fizeste grafite, ou seja, o teu percurso tem um certo tipo de diversidade que eu gostaria muito que tu falasses (…) e também comentasses sobre o que tu estás a fazer agora, influências ou coisas que te marcaram…
Pontogor: É engraçado, porque esse percurso ele é um pouco esquisito até que ele se conforma numa coisa, mas na verdade eu acho que um monte de detalhes fazem bastante sentido, porque na verdade antes de começar a estudar arte de algum jeito um pouco mais organizado, eu tive uma banda com uns amigos quando era adolescente, era uma banda meio de punk-rock, era uma banda um pouco tosca, um pouco suja… e tem uma parte curiosa disso que de repente conecta com o hoje, é que na época eu não tinha a menor ideia de John Cage, música eletroacústica… Eu não tinha a menor ideia de nada disso, eu ouvia Ramones, The Clash, sabe? E eu tinha umas coisas que… a gente tocava muito mal, era horrível, mas uma coisa legal é que era muito bruto o som, então tinha uma coisa meio de energia, mas não era muito refinado, sabe? Então era tipo uma pedrada, uma tijolada assim, era muito rápido e muito intenso… E eu ficava propondo umas coisas pros caras da banda, isso… sei lá, tem muito tempo, mas eu ficava propondo umas coisas tipo “não, vamos fazer umas músicas sem letra, vamos só ficar berrando, vamos fazer umas coisas onde a linha de baixo e a linha de guitarra seguem caminhos completamente diferentes, sem nenhuma conexão mesmo, ou vamos, sei lá, tocar umas músicas que não é nada mais do que cada um fazer qualquer coisa que der na telha” e os caras não topavam muito, eles achavam ridículo, absurdo, sabe? E aí anos depois eu fui descobrir que não, as pessoas faziam isso e que era legal! (risos) Era uma coisa que historicamente já vinha sendo feita há sei lá, cem anos. E a coisa do grafite também é engraçada, porque na verdade eu sempre desenhei, pintei e meio que nessa mesma época que eu tocava com essa banda eu acabei colando com uma galera do grafite e comecei a grafitar e aí, dentro da atmosfera do grafite tinha uma coisa de eu não gostar tanto das coisas mais realistas, e gostava mais quando era umas coisas mais sujas, que poderiam até parecer meio impressionistas, mas essas duas coisas (a banda e o grafite) me deram umas ferramentas que foram muito úteis no meu ingresso no mundo da arte um pouco mais consciente. A banda e o grafite foram duas coisas que você está fazendo uma coisa ao vivo ou está fazendo uma coisa na rua, então isso tira um pouco da mediação entre obra e espectador, tá tudo muito na hora, tá tudo muito colado. As duas coisas também eram meios que sugeriam uma exposição muito rápida e muito explosiva: é isso, você vai fazer um show, umas puta caixas, você tá tocando alto, as pessoas ouvem de longe, o grafite é grande, ele tá na rua, as pessoas veem… isso foi criando um certo jeito de lidar com as coisas que continuou bastante e tinha uma coisa também que em ambos os casos, o improviso estava muito presente, porque na banda a gente não ensaiava muito, era uma coisa super desleixada, era até na ordem inversa: ao invés de ensaiar, fazer as músicas e marcar um show, era uma coisa assim, marca um show, aí depois a gente resolve o que vai fazer, ou tipo, vai na rua pintar, mas não tem uma coisa muito planejada, você vai fazendo. Então a coisa do improvisar era muito presente também, e aí aconteceu uma coisa que fez os caminhos se embolarem que eu entrei pra faculdade de pintura da UFRJ, que é uma faculdade que ainda tem o nome de Belas Artes, então de repente eu entro nesse ambiente, onde a galera ainda tá querendo fazer quadro e tal, uma coisa bonita… E aí, nessa entrada no ambiente da universidade, uma coisa deu uma virada muito rápida, que foi, eu muito rapidamente começar a andar com uns caras que estavam prestes a se formar, por afinidades de um jeito de fazer as coisas: o grafite, a banda…e a UFRJ é um lugar muito… hoje em dia eu não sei muito bem como é que tá, foi mudando umas coisas e isso tem tempo, eu entrei na faculdade em 2001, 2002… Mas naquela época estava muito esculhambada a faculdade e o que a gente tinha de atelier de pintura era uma espécie de galpão com um mezanino, que era bem grande, só que era meio desorganizado, as coisas eram meio soltas (…) os materiais eram todos caquéticos, os cavaletes, as estruturas, era tudo um bando de coisa dos anos 60, 70, quebradas… mas por outro lado isso era muito bom (..) a gente fazia as coisas e ninguém tinha muito como… as pessoas até tentavam às vezes, mas não tinha muito como travar a gente, porque já estava tudo tão esculhambado… e eu comecei a andar com umas pessoas… sei lá, o Gustavo Speridiao, o Carlos Contente (…) fez a gente entrar numa espécie de movimento que era gerado por catarse e um jeito mais espontâneo e mais largado, quase dadaísta assim… e isso sim eu considero que foi a minha formação em arte…
Rui Chaves: Sem querer interromper a tua linha de conversa, mas essa natureza do contato com as pessoas e a colaboração é algo que tu manténs bastante na tua prática, parece que é uma coisa que ainda está muito forte no teu trabalho…
Pontogor: E eu acho que vai se manter, porque eu não tenho… Há pouquíssimo tempo, semanas atrás, eu fiz uma brincadeira com um amigo e falei que eu vou montar um portfólio dos meus trabalhos e um portfólio dos trabalhos que eu fiz com alguém, porque na verdade é tão grande a quantidade de colaborações, que talvez eu me arrisque a dizer que eu tenho mais trabalhos feitos colaborativamente do que sozinho… e isso se dá de diversas formas, porque eu nunca tive um grupo, um coletivo de arte, nunca foi dessa forma (…) Se a gente for pegar esse início meu com o grafite e com a banda, ele já explica muita coisa. O grafite normalmente a gente faz junto com alguém, é muito raro a galera sair pra grafitar sozinha, e a banda também se dá por um grupo. Tem uma coisa que nesse período já da faculdade, a gente fazia muita coisa que davam um certo trabalho, certos acúmulos de coisas, ou tinha que pregar um negócio não sei aonde, algumas coisas, propostas de uns e de outros que davam um certo trabalho fazer sozinho; e como tava todo mundo lá, e como não era nada profissional, era mais “ah, tá todo mundo lá, então vamos aí fazer esse negócio aí”, então sempre funcionou de um jeito que era: alguém propunha uma coisa, quem tá a fim de ajudar, ajuda. Às vezes eu propunha alguma coisa, às vezes outro propunha, e isso foi se tornando uma coisa cara pra mim, eu comecei a olhar pra isso com uma importância maior do que só…. não é exatamente uma ideia de necessidade, é quase uma ideia mais exagerada do que necessidade, é como se eu achasse um tanto impossível essa ideia de fazer as coisas sozinho, então sempre pareceu mais lógico, fazia mais sentido chamar alguém pra fazer alguma coisa junto, ou querer participar, então várias vezes o que eu fiz foi entrar em certas ondas ou sugerir que as pessoas entrassem na minha onda (…) Eu faço coisas sozinho, porque tem horas que não tem ninguém perto, mas… (risos)
Rui Chaves: Outra coisa que tu mencionas-te quando estavas a falar da tua banda, tinha a ver com a ideia de brutalidade (…) até que ponto e particularmente essa ideia de energia continua a percorrer o teu trabalho?
Pontogor: Eu acho que isso se mantém bem forte e isso foi uma coisa que surgiu num momento onde eu comecei a perceber que quando eu pintava, na verdade eu não tava muito preocupado com o resultado, eu tava preocupado com como eu fazia pra pintar, então não só a ideia do processo em si, mas o tipo de transformação que acontecia em mim ao me mover e aí isso começou a ficar mais exagerado, porque quando eu comecei a trabalhar com vídeo e com som, eu forçava essa barra, pra exagerar essa presença física, então eu podia estar tocando guitarra, mas a ideia não era o som da guitarra, a ideia era como meu braço se movimenta pra bater nas cordas, como que eu movendo a guitarra faço som… isso se tornou muito forte e continua com uma presença muito grande principalmente nas performances, mas o que eu fui talvez entendendo nos últimos tempos, é que de algum jeito, em alguns trabalhos meus, e aí talvez nem todos sejam de som, eu comecei a ver que dava pra fazer pra dar uma certa empurrada pro público ter esse tipo de presença, então por exemplo, o trabalho do CHÃO , lá da Oswald (Oficina Cultural Oswald de Andrade), é um chão inclinado, só, mas a própria relação das pessoas em cima de um chão inclinado, muda. Então eu fui tentando, pra além da energia que eu colocava em mim, tentar fazer com que as pessoas passassem um pouco pelos problemas…
Rui Chaves: Eu fiquei completamente com essa sensação, antes de falar contigo, eu fui lá ver a instalação e senti exatamente isso, achei que a rampa tinha uma dimensão performativa também, quase como se fosse um palco.
Pontogor: Sim, é um jeito de colocar as pessoas dentro de um espaço, ela é parte real do trabalho, mas isso se dá também em outros trabalhos, muito mais relacionados com som, que era o trabalho que eu te expliquei outro dia que o nome é “Deus, Diabo e Homem” , que eram três caixas de som dentro de uma piscina vazia. Eu tenho o som gravado, dá pra ouvir em casa isso, ok, mas não é a mesma coisa, porque a disposição das caixas no espaço, a acústica do lugar, a reverberação do som, tudo isso fazia com que o som se transformasse o tempo inteiro, dependendo de onde as pessoas que estavam ouvindo estavam andando ou estavam paradas, sentadas em pé de um lado, do outro, então o que eu comecei a tentar fazer em alguns trabalhos foi colocar essa sensação que normalmente estava mais exagerada em mim e propor ela pro público, colocar pra ele, quase como se eu falasse “não adianta você querer pensar no trabalho contemplativamente, você tem que de algum jeito tentar interferir nele, nem que seja andando, ou se sentindo incomodada, porque tá inclinada no espaço”. É engraçado, porque, de algum jeito, um pouco até simples e bobo, a própria construção desses trabalhos me gera uma energia, faz com que eu tenha que chamar gente pra fazer coisas, então parece que desde o começo do processo sempre tem fundamentalmente essa ideia de que alguma coisa tem que ser mexida.
Rui Chaves: Tu podes falar um pouco mais do teu trabalho que fizeste na piscina? Que isso fez parte do projeto de “permanências e destruições”, não é?
Pontogor: Ah, isso foi muito massa, porque o que aconteceu foi que o João Paulo, que é o curador dessa série de trabalhos que aconteceram dentro desse projeto “permanências e destruições” entrou em contato comigo falando que queria me chamar, porque achava que tinha a ver meu trabalho com essa ocupação de espaços abandonados ou degradados, só que eu acho que quando ele me chamou ele não tinha a menor ideia do que eu ia fazer, se eu ia fazer um trabalho com som, se eu ia colocar alguma coisa, um objeto… no caso ele me mostrou as fotos de alguns dos lugar e quando eu vi a piscina eu falei: “cara, esse lugar é muito bom, acho que aí eu vou fazer um trabalho bom.”. Eu não podia ter essa escolha exatamente, mas eu dei uma forçada, porque dava pra ver que aquilo lá, por si só, já era muito incrível. Dava um pouco de vontade de ficar ali, então eu tive uma vontade inicial que era estar nesse lugar. E aí quando eu fui na piscina, era um negócio impressionante, era uma piscina de 25 metros por 10 metros e 3,5 mais ou menos de profundidade. Ela teve um problema de vazamentos e tal, que fez com que ela tivesse que ser esvaziada, desativada, mas nesse processo eles tentaram usar manta asfáltica nas paredes da piscina e ela ficou com uma aparência absurda, parecia, sei lá, umas pinturas do Richard Serra num lugar enorme, tudo preto, meio tosco, desgastado. E essa piscina, ela foi construída de um jeito que é muito maluco; Santa Teresa é um morro e ela sai desse morro e é apoiada por pilastras, então ela tem uma vista absurda do Rio de Janeiro. Quando eu fui no lugar a primeira vez, eu tive um certo problema, porque eu queria estar naquele lugar, mas eu queria estar naquele lugar por causa da piscina, não por causa da paisagem. Quando você chega na piscina, você já vê a vista incrível, é maravilhoso, a vontade que dá é circundar ela, andar pelas bordas dela até o final, pra poder olhar a vista, e aí eu pensei isso, eu vou forçar a barra para que o público faça isso. E aí a primeira ideia que eu tive antes de pensar em som, era colocar uma escada, pra que as pessoas conseguissem descer na piscina, só que essa escada era colocada no final da piscina, pra quem estava chegando, então a pessoa ia ter que andar, dar a volta na piscina toda, pra no final descer a escada; esse movimento de descer a escada tinha uma certa ideia de negação daquela paisagem: depois de você entrar num lugar que é super bonito e você encontra uma vista maravilhosa do Rio de Janeiro, você é obrigado a falar “não, agora eu não quero mais ver a vista, agora eu quero descer e entrar naquele lugar super estranho, uma espécie de calabouço…
Rui Chaves: Isso explica também, foi uma coisa que eu fiquei a pensar… me corrija se não tiver… mas quando eu vi a foto eu pensei que tu puseste as colunas num triângulo… eram três colunas, né? Ou eram mais colunas?
Pontogor: Eram só três caixas de som.
Rui Chaves: Mas era um triângulo?
Pontogor: A posição era triangular, sim.
Rui Chaves: Eu queria te perguntar, porque eu achei bonito, é que tu decidis-te não ocupar a piscina inteira com caixas, agora eu pensei porque, se tivesse a ocupar a piscina inteira com caixas, as pessoas não iam entrar na piscina, ia ficar ali só a observar “ah, que bonita a piscina”, então tu realmente faz com que a pessoa faça esse trajeto e a coisa mais bonita é que tenha espaço pra decidir “eu posso ir daqui, posso ir do outro lado da piscina desfrutar de outra experiência da piscina uma vez só, o eco que tá ali, que é legal.”.
Pontogor: Não, é muito fundamental a coisa de botar as caixas de forma triangular, primeiro porque tinha um jogo geométrico que me interessava que era: a piscina é retangular, dentro dela eu coloco um triângulo, e o movimento das pessoas organicamente forma círculos ou espirais; essas três formas geométricas simples: quadrado, triângulo, círculo, me interessavam, e era um jeito de eu jogar com as três formas, uma já estava lá, outra eu coloquei e outra eu não tenho como saber o que vai acontecer, eu só tenho como sugerir. Tinha uma outra razão também de colocar essas caixas triangularmente e não nas bordas da piscina, mas um pouco mais no centro, que era criar a possibilidade de alguém poder andar por trás das caixas ou pelo meio das caixas, e como a piscina era super grande, isso era super possível, as pessoas podiam ocupar a parte entre caixas ou atrás das caixas, e isso modificava completamente o som. Só que a ideia do som mesmo veio depois de primeiro pensar que eu queria que as pessoas descessem, e aí quando eu entendi que as pessoas iam descer, eu pensei ‘agora tenho que fazer com que elas fiquem aqui dentro… como é que eu faço elas ficarem aqui dentro?’, e aí eu comei a pensar que, construir algum trabalho sonoro que fosse relacionado a drones e uma coisa quase meditativa, era um jeito de fazer com que as pessoas tivessem uma certa expectativa em relação ao som. Eu achei que se ele fosse muito dinâmico, as pessoas iam ouvir um pouco e elas iam rapidamente ‘ai, já entendi’, mas quando ele é muito constante e demora muito pra se ir se transformando, eu achei que a expectativa delas ia fazer com que elas se mantivessem ali mais tempo, esperando que alguma coisa fosse acontecer, só que as variações elas se davam tão lentas que elas ficavam mais tempo ali dentro. Acabou que uma série de coisas também fizeram esse trabalho funcionar muito melhor: uma é porque, mais do que eu imaginava, as pessoas ficaram muito tempo dentro da piscina, porque o que eu fiz foram três composições, uma pra cada caixa de som, três vozes, só que, pra cada grupo de três eu fiz três composições com esses grupos, cada composição tinha uma hora e dez, então pra ouvir o trabalho inteiro, tinha que ficar três horas e meia dentro da piscina ou por ali, algumas pessoas ficaram, claro que foi a minoria, mas muita gente ficou mais do que uma hora dentro da piscina, porque é muito estranho e não era uma coisa que eu estava esperando. Eu acho que isso se deu por uma série de detalhes, a piscina, por mais estranha que fosse, era um lugar tão anormal, que era uma oportunidade muito boa ficar naquele lugar; o tempo também ajudou muito, porque apesar de ser verão no rio, na época que o trabalho foi feito, ficou super nublado, de um jeito assustadoramente nublado, então o céu estava muito carregado, só que sem chover forte em nenhum momento, só garoa, então ficou um clima gostoso, o céu cinza, que tinha uma relação melancólica, relacionada ao som, e isso foi gerando nas pessoas, num plano bem exagerado isso que eu vou falar, mas quase como se elas estivesse numa capela, e isso criou um ambiente…
Rui Chaves: Eu vejo na tua conversa uma ideia de transformar o espectador num coautor do teu trabalho, porque você pede a eles que se posicionem e foquem nisso, “eu quero que tu posiciones sobre meu trabalho, quero que tu cries uma relação aqui com ele”
Pontogor: É, e em várias performances isso está presente, naquela que eu te expliquei também, que aconteceu na Oswald , que eu inverti a posição mais clara, onde seria palco e público, e eu na verdade botei ao contrário, então as pessoas tinham que entrar e aí elas davam de cara com o que seria como se fosse um palco e plateia invertidos, então elas tinham que passar por onde teoricamente era o palco, pra depois chegar no lugar onde elas sentariam e só essa sensação do público abrir a porta e não saber muito bem o que fazer, porque na verdade ele tem que passar por dentro do espetáculo pra depois chegar no lugar onde ele vai assistir, fazia com que o público fosse… a primeira pessoa que entrou não, ela entrou e sentou, mas a segunda que entra, ela já é parte do espetáculo pra primeira que vê e o fato dela abrir e fechar a porta, ela modificava a iluminação do espaço de um jeito aleatório, porque eu não sabia quando as pessoas iam entrar ou sair; e isso eu tentei fazer em muitas das performances. Tem um outro exemplo muito característico disso que foi uma performance que eu fiz no MAM, do Rio, só que na parte de baixo do MAM, não dentro de uma sala, mas num espaço aberto, e aí as caixas de som ficavam em volta do espaço, só que tinha um núcleo no meio, bem centralizado, que eu coloquei um amplificador, uma guitarra, um baixo, onde eu fiz a ação, só que eu tive uma preocupação que eu não queria que o público ficasse de frente pra mim, porque eu achei que era muito fácil essa relação pro público me olhar de frente, e aí o que eu fiz foi colocar dois holofotes de 2.000 Watts cada um, atrás de mim, virados pra frente, então se a pessoa estivesse olhando pra mim de frente, na verdade a luz era tão forte que ofuscava, o que fez com que o público todo se situasse atrás de mim, e isso é um jeito de criar esses problemas incluindo o público, ou você fica num lugar onde você consegue enxergar, ou você fica num lugar onde a luz te atrapalha, e isso é uma escolha sua. Cada pessoa dessas, a pessoa que ficou atrás ou a pessoa que ficou na frente, ela tem uma percepção diferente do trabalho. E aí são pequenos mecanismos pra tentar mostrar que na verdade o ponto de vista altera tudo, então se a pessoa tá olhando uma coisa como arte, ou se ela tá olhando aquilo como uma mera atividade, isso por si só já muda a relação que a gente tem com as coisas; uma pedra é só uma pedra, uma pedra dentro de um museu, é uma outra coisa. Então, mexer com o público e forçar ele a ter esse problema é um negócio que me atrai, me agrada, porque também desmistifica um pouco a ideia do que é a arte, do que não é, por que eu tô de um lado e ele tá de outro? Por que não pode ser invertido e dar certo do mesmo jeito?
Entrevistador: Falaste também que havia um lugar no Rio que passava muita música experimental… eu já me esqueci do nome… ou era uma loja de discos?
Pontogor: Plano B.
Entrevistador: Plano B! Sim!
Pontogor: É, esse lugar foi fundamental pra mim, foi minha escola de música. Eu nunca estudei música formalmente, sempre fui aprendendo, tocando junto com as pessoas, mas quando eu descobri o Plano B, que foi por volta de 2003, 2004, aí mudou alguma coisa na minha cabeça, porque eu vi a quantidade de gente que tinha no Rio de Janeiro fazendo música maluca, de formas completamente diferentes, e como a maior parte dessa galera era meio nova ou tava entrado ali de paraquedas, conhecia alguma coisa ou outra, o que rolou é que muita gente ali foi aprendendo uns com os outros de um jeito muito bom. Ah, o Plano B era um lugar absurdo, é muito difícil ter um lugar como esse; era uma loja de discos minúscula, que cabiam 20 pessoas dentro, no máximo, às vezes cabia muito mais, apertado demais também (risos) e quem levava a loja era o Fernando e a Fátima; era um lugar onde toda sexta feira tinha show, o Fernando e a Fátima não cobravam, então era de graça e durante um bom tempo eu morei em Santa Teresa, então eu saía de casa e ia pra lá a pé, independente do que eu fosse fazer na sexta feira eu passava lá no Plano B antes e ficava meia hora ou ficava seis horas lá, bebendo uma cerveja e depois ia fazer outra coisa ou ia fazer outra coisa e voltava e era um lugar super aberto, então não tinha muito essa ideia de que uma seleção de projetos, de quem vai tocar e quem não vai, meio que todo mundo tocou ali, sei lá eu devo ter tocado no Plano B umas 50 vezes, então esse lugar foi muito importante, porque fez com que eu entendesse um leque gigantesco de possibilidades dentro de músicas de improviso, música experimental, me fez conhecer um monte de gente e me fez poder testar as coisas, sem medo, sem frescura, porque boa parte das vezes que eu toquei lá não era bem um show, uma coisa organizada, era tipo ‘ah, vamo fazer qualquer coisa’, sabe? Não, esse lugar era muito incrível, durou dez anos esse lugar e tem poucos anos que ele fechou.
Rui Chaves: Outra coisa que transparece no teu trabalho é uma ideia de, não só nos espaços que tocavas) e na tecnologia que tu usas, uma opção por usar a tecnologia que está quase a desaparecer, seja com a câmera HI8, ou um órgão que tem muito a ver com a destruição, ou quase desuso… Não sei se achas essa observação…
Pontogor: Não, eu acho ótimo, porque tem algumas coisas aí… Tem um pouco a ver com a Escola de Belas Artes… é isso, a gente ficou convivendo uns com os outros naquele ambiente cheio de tralha durante anos… eu comecei a internalizar uma ideia: dá pra fazer arte ou música ou qualquer coisa do gênero com as coisas que estão ali, com as coisas que tão à mão, com as coisas que estão ao redor, e aí eu acho que eu fui desenvolvendo um jeito de olhar pro mundo menos relacionado em querer alguma coisa do que usar aquela coisa eu está por ali, então antes de ter uma ideia e querer alguma coisa que ainda não existe, de um modo geral eu acabo tentando olhar o que tem em volta e esses são os materiais. Ah, eu lembro de uma brincadeira, uma coisa super boba, mas teve uma época na faculdade que eu passei um ano inteiro usando o mesmo balde de tinta preta, porque por acidente eu perdi a tampa, aí eu falei ‘pô, vou ter que usar essa porra todo dia, porque se não vai secar’ e aí meu material durante o ano inteiro foi uma espátula e o balde de tinta preta (…) Em relação à coisa do som e vídeo, sei lá, depois de anos trabalhando com vídeo eu fui comprar uma câmera, porque na verdade eu tinha uns vídeos cassetes, umas TVs, umas câmeras, que foram desaparecendo, sei lá, minha tia tinha uma câmera que não usava, tava guardada, eu peguei a câmera, aí um outro tinha uma TV, vai juntando um monte de tralhas (risos), eu ficava brincando que eu tinha uma ilha de edição do apocalipse, porque era um monte de porcaria, tudo funcionava meio mal e foi o tipo de equipamento que eu usei durante muito tempo. Eu tenho um órgão em casa e eu só tenho esse órgão, porque um amigo se mudou pra uma casa que tinha um órgão e não tocava e aí ele falou ‘mano, tu quer essa porra? Toma pra você’, eu fui e peguei; é uma coisa de o que está em volta, vai me facilitando, quase como se o mundo já dá as sugestões, sabe? As coisas já estão meio que aí. Tem jeitos de fazer as coisas, tem gente que consegue ter uma ideia de planejamento, uma ideia de escolhas, que eu fico com a sensação de que não e muito minha praia, sabe? Acho que mais do que os desejos, é um entendimento do que já está ali meio presente, então meus trabalhos se dão muito enquanto tá fazendo, sabe? (…) A pessoa que tem um sofá novo, uma TV nova, e a todo tempo ela tá trocando, é como se ela, de algum jeito, tivesse negando a própria existência dela, é como se ela tivesse um presente estático, onde todas as coisas funcionam e estão limpas, ela parece que afasta dela essa possibilidade da morte, essa possibilidade do desgaste, do envelhecimento… e essa coisa do meu prazer é uma tentativa de entender também isso, sabe? O tempo passa, eu hoje em dia já não tenho a mesma energia de quando eu tinha 17 anos e daqui a dez anos eu vou ter menos energia e vou ter menos cabelo e vou conseguir fazer coisas diferentes e talvez intelectualmente alguma coisa se amplie, mas fisicamente talvez piore, então…
Entrevistador: Achas que essa ideia de transformação e tempo, a maneira como tu vês o tempo de transformação e tempo de duração, achas que é algo que vai continuar a influenciar o teu trabalho?
Pontogor: Definitivamente. Se você pegar todos os meus cadernos de anotação, em pelo menos umas dez páginas de cada um deles está escrito ‘tempo’, sei lá o tempo é uma coisa que…
Entrevistador: Porque tem uma coisa que também é profundamente musical, não é?
Pontogor: Totalmente! A música só se dá no tempo, como a existência só se dá no tempo… e é engraçado isso, porque, como boa parte dos meus trabalhos eu não apresento em ambientes fundamentalmente de música, acontece um distúrbio sobre esse problema do tempo, que eu acho muitas vezes positivo, nem sempre, mas muitas vezes, que é, normalmente quando você vai a um show, ou assistir a um concerto ou qualquer coisa do gênero, tem uma hora que o portão abre, você entra, senta, a coisa começa, termina e as pessoas saem, e aí, certas estruturas como eu e a Luiza fizemos, da gente começar a tocar antes do portão abrir e parar de tocar depois do portão fechar, com as pessoas já fora, a possibilidade desses lugares alternativos, que a música tem entrado, se mesclando com artes visuais e com outros ambientes, vai possibilitando umas certas brincadeiras, uns certos jogos, com essa própria ideia do tempo (…) Mesmo trabalhos meus que são um pouco mais narrativos, essa narrativa ela brinca um pouco com a possibilidade da pessoa assistir 5 minutos, ou duas horas, sei lá, tem um outro trabalho meu bem de música que o nome é ‘Overlap’ (Sobreposição), que é uma espécie de música minimalista, pra piano, só que pra um piano elétrico ligado num ‘loop station’, num pedal de ‘loop’, então eu começava fazendo uma variação de notas e gravava essa variação por dez minutos, depois eu soltava o loop e começava a fazer uma outra variação, por dez minutos, depois eu soltava o loop já das duas e continuava; a ideia do acúmulo brinca um pouco com a ideia de macro e micro, porque se a pessoa entende a célula da música, ela talvez já tenha uma ideia do todo, mas é claro que se você ouvir tudo, ela tem uma experiência diferente, o que é diferente de um ideia e quando eu jogo isso pro espectador, eu tô tentando falar pra ele assim: ‘dependendo da sua intenção, você tem uma experiência ou você tem um entendimento’, que são coisas muito diferentes, mas aí não tenho como obriga-lo a ter experiência, mas ele pode.
Rui Chaves: É como na piscina, onde as pessoas têm que se mover para ter pontos de escuta diferentes, a acústica do espaço vai mudar radicalmente, se ela ficar uma hora é uma experiência, se ela ficar duas horas, é outra experiência.
Pontogor: Uhum. E dentro desses trabalhos de música mais longos, como o da piscina, a performance de três horas, o trabalho do Tomie Ohtake (sem título) que tinha nove horas, tem uma coisa que é jogar um pouco com essa ideia de que, pra algumas coisas, leva muito tempo, que é outro tipo de coisa que eu levo muito a sério: não dá pra você achar que você vai ter uma experiência verdadeira, sem ter um pouco de paciência pra que a coisa te atinja, é muito diferente ouvir um acorde qualquer por 1 minuto e ouvir esse mesmo acorde por meia hora, é quase como se esse acorde, com meia hora de escuta, fosse criando outras relações na cabeça, então eles vão fazendo você ouvir eles de um jeito diferente, você vai colocando ele como figura e fundo diversas vezes, porque o tempo é tão alargado, que o barulho do carro às vezes é figura, às vezes é fundo, então…
Rui Chaves: Neste caso, na obra do Tomie Ohtake , muito por erro meu, não encontrei informação sobre a duração da peça…
Pontogor: Então, esse foi um problema muito sério, o que eu tive que decidir foi: eu coloco a duração ou não? Porque muda completamente a percepção do trabalho. Foi difícil decidir isso e eu pedi a opinião de várias pessoas e cada uma dava opiniões mais malucas e razões (…) ganhou as pessoas que achavam que eu deveria colocar a quantidade de tempo, porque todas elas tratavam como se a quantidade de tempo fosse um dado do trabalho e eu concordo, é, mas não precisa estar escrito, porque o ‘dó’ é uma qualidade de um trabalho sonoro, dentro de uma composição, onde tem um ‘dó’, você não precisa ver a partitura, ele vai estar dentro da composição inteira, você pode até perceber, por uma boa audição (…)isso foi uma coisa que eu preferi não colocar, eu preferi que as pessoas não soubessem, porque se ela ouvisse aquilo por algum tempo, ela ia perceber que todo tempo que ela tá ouvindo, nada ia se repetir, e aí talvez isso pudesse gerar nela uma certa curiosidade de ‘será que uma hora repete? E se não repete, como faz?’, porque a ideia era o trabalho ter o tempo inteiro que o espaço ficava aberto, que era nove horas, então alguém chegava lá, dava 1 play e o trabalho tocava até a hora de desligar.