Tiago Costa#1

Em meados de Dezembro, a Flora Holderbaum (editora da Linda) desafiou-me a escrever um artigo para a Revista Linda. Aceito o desafio e replico que tenho a vontade de fazer algo à volta do meu projeto de pesquisa atual: a criação de um arquivo online dedicado à apresentação e mapeamento de artistas sonoros brasileira(o)s.

‘Um possível arquivo de arte sonora brasileira(o) realizado entre 2016-2017’

O título deste projeto explicita uma dimensão prática e conceitual deste arquivo. Uma, é que este é um processo delimitado temporalmente e que constitui um ‘snapshot’ do trabalho existente neste período. O outro, é que parte das estratégias utilizadas e o trabalho incluído e apresentado, reflete a subjetividade do ‘arquivista’ e o seu posicionamento relativo ao imaginário conceitual e prático das ‘artes sonoras’. Algo que extravasa de uma discussão puramente estética, para algo que enquadra um contexto económico, social, político e material. Não quer dizer que não haja espaço para uma dimensão centrada no campo estético, sendo existe uma preferência por uma abordagem que foca na ideia de uma sensibilidade: uma preocupação com o meio sonoro que pode ter uma expressão interdisciplinar (dança, texto, performance, teatro e inclusive música) e que transborda algumas discussões de fronteiras entre música e artes visuais. 

O outro elemento, é que esta plataforma visa coletar elementos que possam constituir uma historiografia e reflexão alternativa a narrativas existentes que focam numa realidade euro-americana. Ao fazer isto, espero poder contribuir para uma abordagem cada vez mais fluída do que é fazer  arte sonora.

É neste enquadramento que o arquivo se centra à volta de duas ações: a criação de um ‘mapa’ de artistas e práticas  associadas; e um ‘processo’ de trabalho de campo (até ao final de 2016) donde o ‘arquivista’ tenta capturar junto de uma seleção de artistas, relatos do fazer artístico no campo das ‘artes sonoras’. Este material é publicado em formato de blogue em paralelo ao mapa, auxiliado pela captura de outros materiais que retratem o processo criativo de cada artista: fotografias, textos, pautas, vídeos, gravações áudio. 

A articulação desses dois elementos articula uma dimensão crítica relativa à ideia de arquivo: não só como um repositório de trabalhos, mas como um processo dinâmico onde o arquivista promove atividades que visam capturar tanto o discurso direto dos artistas sonoros como a relação destes com o ‘arquivista’. É nesse contexto, que se segue a seguir um relato ‘polifónico’ de um exercício de ‘field recording’ que realizei com o artista Tiago Costa na cidade de Tietê (SP). Este é um possível exemplo do ‘processo de trabalho de campo realizado no arquivo.

A plataforma online com o domínio nendu.net  (nendu é tupi para ouvir-se) ainda está em construção. Quando o projeto estiver finalizado, essa informação será atualizada aqui. 

RUI CHAVES

DIA 1

Marco um encontro com o Tiago na estação de metro Barra Funda, para apanharmos um ônibus para Tietê. Este encontro resulta de contatos e da vontade deste de gravar o som de cigarras na sua cidade natal. Este também estava interessado em usar os microfones binaurais, que acaba por ser o formato donde fazemos as gravações que realizamos no fim-de-semana de 29 a 31 de Janeiro (2016). A explicação de como estes microfones funcionam vai gerar uma série de conversas donde eu tento explicar como este formato funciona — provavelmente de uma forma muito pouco precisa.

Acordo cedo, e carregado com todo o material de gravação, viajo ainda de noite para a estação. Ao chegar, encontro já um lugar vivo. Tomo um café de manhã e ainda com fome tomo outro. Como sempre, chego sempre cedo demais e procuro as informações de forma a tentar encontrar a catraca da rodoviária.  Felizmente, o Tiago chega cedo também e em breve recebo uma mensagem de texto deste a dizer-me que já tinha comprado os bilhetes.

Encontramo-nos e começamos a conversar. A conversa vai fluir de forma constante durante o meu período com o Tiago. Ele é um artista com uma vasta experiência profissional em pós-produção audio e está bastante interessado/atento/ativo na cena de música experimental paulistana. Este conhecimento  gera entre nós vários momentos de risota: ao fazer ‘fofocas’ e comentar determinadas personagens da cena. 

A conversa continua adentro no ônibus – que é quebrada por um breve elogio meu ao sistema de ar condicionado do veículo – que se encontra bastante moderado. Qualquer pessoa que tenha viajado de ônibus no Brasil, sabe do frio que-se passa em viagens de longa duração.  Nesse fluir verbal, vislumbro ao nos afastarmos da cidade, uma paisagem que corta com a minha vivência e experiência diária em São Paulo. É difícil ver o horizonte nessa cidade.

Passamos por uma terra com um nome estranho e engraçado para mim – Boituva!

A cidade (Boituva) é bastante conhecida pelas suas atividades de parapente. Num comentário rápido feito algures durante este fim-de-semana, descubro que o Tiago tem medo de alturas e que não tem grande vontade de voar nas alturas. Eu concordo. É também durante a paragem nessa cidade, que o Tiago me fala de uma tradição musical regional que se chama ‘Cururu’: uma forma de duelo entre violeiros, que a mim se assemelha a uma ‘rap battle’:

Este comentário gera um sorriso na cara do Tiago, que é reforçado pela minha incapacidade de dizer a palavra de forma correta: Pururu, Cururuca, Pururuca.

Chegamos a Tietê cedo e cheios de sono. Á primeira vista, a cidade tem uma dimensão e escala que contrastam com São Paulo. A altura da cidade é pequena, pontuada por alguns condomínios que destoam da paisagem predominante. A estação de ônibus tem um pequeno boteco e pouco mais. O tempo está nublado, mas o Tiago diz-me que a cidade é muito mais quente e seca que São Paulo.

Este também me diz que a imigração italiana é bastante presente na cidade, assim como festejos de cariz religioso. Cedo chega a mãe do Tiago e encontro uma pessoa de uma simpatia enorme. 

Na casa do Tiago tomo o terceiro café da manhã. Com algum esforço e excitação saímos para visitar alguns putativos locais para gravação. Esses locais ficam muito perto da casa do Tiago – fico impressionado com a relativa qualidade ‘hi-fi’ da paisagem sonora. Para quem não sabe,  este termo vem do autor e compositor R. Murray Schaeffer que criou um campo de ativismo/pesquisa chamado de ‘ecologia acústica’. Este criou uma distinção entre sonoridades ‘hi-fi’, – normalmente relacionadas com sons da natureza – e ‘lo-fi, – sons da cidade, indústria e etc.

Não sei se concordo com essa dicotomia ou visão da ‘ecologia’, mas para além de um som caraterizado por pássaros, insectos e algumas motas a passar; um cheiro pungente a esgoto perfuma o nosso passeio.

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Da nossa vista também nunca escapa casas com uma arquitetura que me faz lembrar outras regiões do mundo.  O Tiago aproveita e fazemos uma gravação usando os microfones binaurais. Este faz uma pequena rota e grava diferentes áreas.

(Gravação de Tiago Costa // Usar fone de ouvido)

Voltamos para casa e o Tiago ouve a gravação. Fazemos uma pequena conversa sobre este processo. Sentámo-nos à mesa para almoçar e tento explicar à mãe do Tiago a minha pesquisa e o que envolve o processo de gravação binaural:  a cabeça é um filtro que permite criar uma imagem 3D durante o processo de gravação. Eu próprio tenho uma compreensão limitada sobre este processo.

Acabamos por ter uma tarde mais calma. Eu ainda um pouco excitado, decido sair para fazer alguns testes com a camera que eu comprei para documentar o meu trabalho de pesquisa. O Tiago e a mãe dele sugerem que eu vá visitar o rio.

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Faço uma pequena gravação pela cidade usando um mecanismo que me permite prender a camera à cabeça.  Seguindo as indicações deste encontro o rio (Tietê) e marginal, vislumbro no meu lado direito um campo de futebol.

A cor da água tem é bastante castanha e existe um cheiro que não consigo explicar. Parece que em tempos se poderia tomar banho nesse curso de água, que existira inclusivé um clube de natação. Com o passar dos tempos isso deixou de ser possível, mas ainda existe uma celebração religiosa donde dois barcos se encontram num determinado lugar.

O rio tietê passa por São Paulo. Encontro um pequeno palanque, – perto de uma área de construção – e inadvertidamente ouço uma conversa sobre qual é a maior claque de futebol no país. O sono e cansaço bate forte e decido voltar para casa. Tento transferir os ficheiros para ver os vídeos. O computador tem problemas em fazer o playback dos videos devido à resolução. Desisto e adormeço.

Acordamos para jantar e depois disso vamos dar uma volta pela cidade. Quando eu digo volta, foi literalmente andar às voltas por entre alguns quarteirões que circundam a praça central. A conversa está boa e continuamos bebendo umas cervejas na varanda da casa do Tiago. Não sei se foi nesse dia, ou no outro a seguir, mas comentamos a falta de representatividade de alguns grupos na cena de música experimental paulistana.

O Tiago também me pinta um mapa dos selos existentes. Decidimos que talvez fosse um bom projeto ter um selo de field recording local, pois não existia nenhum no Brasil. Rimo-nos com a possibilidade de o projeto ser rentável ou fiável – a expressão utilizada na descrição deste tipo de projetos ao longo da noite é ‘fazer por amor’. 

Combinamos acordar cedo, para fazer a nossa primeira gravação do dia e apanhar os passarinhos a cantar. Adormeço ao som do drone da ventoinha que me refresca. 

DIA 2

Eu tinha uma ideia para um possível projeto de colaboração entre nós, e tinha inclusivé enviado um plano para o Tiago. O projeto passava uma ideia conceptual de cruzar a nossa colaboração, com os fundamentos técnicos do processo de gravação binaural.

Captura de Tela (129)

Apercebi-me que seria demasiado complexo e que não queria condicionar tanto o nosso encontro e processo de gravação durante o fim-de-semana. O foco agora, e tanto quanto possível, seria documentar o trabalho do Tiago.

O despertador toca, e eu preparo o equipamento de video e audio. Os dois temos um ar cansado, mas estamos com boa disposição. A ideia é gravar o percurso/gravação que o Tiago vai fazer — então monto a camera na cabeça e o Tiago coloca os microfones binaurais; por alguma razão o gravador dá algum problema com o cartão, mas consigo solucionar o problema. 

(Gravação de Tiago Costa // Usar fone de ouvido)

Voltamos para casa e voltamos a dormir — temos de descansar, pois mais logo vamos fazer mais algumas gravações. Eu tento, mas acabo por dormir pouco. O calor aperta e levanto-me da cama para tomar o café da manhã. A mãe do Tiago já se encontra à volta de alguns afazeres da casa. O dia está bonito.

Estou ansioso pelo o que vamos fazer à tarde. A área é bastante bonita, com os seus canaviais de açúcar que se espalham por todo o lado. 

Era para ser mais cedo, mas o amigo do Tiago deu a sugestão de nos encontrarmos depois do almoço. Assim foi, mas ao sair começa a cair uma chuva imensa. De qualquer maneira, saímos em direção a uma terra do qual eu me esqueci do nome. Ficamos a fazer tempo, mas decidimos gravar também um pouco o interior do carro e o momento da nossa espera por uma meteorologia mais simpática.

Quando a chuva para. Encontramos o Marco, uma pessoa extremamente gentil e simpática. No caminho, explico o que estou a fazer em termos de projeto de pesquisa, e depois lhe empresto o gravador para ele ouvir como soa uma gravação binaural – ele diz que parece que está mesmo a acontecer à volta dele. Discretamente, eu gravo a conversa deles e brevemente deixo-me levar por histórias sobre amigos e programas de tv onde discutem a natureza da ‘dor’.

(Gravação de Rui Chaves // Usar fone de ouvido)

Entramos num caminho de estrada e chegamos ao local onde vamos gravar. Temos de saltar uma cerca, e os meus sapatos ficam cheios de lama. Aliás, toda a nossa roupa vai ficar molhada ou suja. No final, o carro da mãe do Tiago vai sofrer as consequências do nosso intrépido passeio. Para além disso, não cheguei a perceber com detalhe se  é possível ou não entrar no território que vamos explorar.

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A paisagem é linda e andamos (a saltar mais algumas cercas) até chegar ao rio. Aí paramos para fazer outra gravação. Não sei se será da chuva, mas a água tem uma cor castanha intensa e o céu ainda se encontra nublado. Apanhamos principalmente o som deste curso de água. 

Após acabarmos, o amigo do Tiago vai fazer uma gravação – e desaparece por uns bons minutos 🙂

(Gravação de Marcos André Lorezenti // Usar fone de ouvido)

Ficamos um pouco preocupados, mas ele chega a dizer que temos de mudar para outro lugar – que para ele é mais interessante. Um percurso que seria mais rápido, é evitado pela possibilidade de existência de aranhas ou cobras.

Começamos a andar e passamos por um rancho donde encontramos uma família a preparar um churrasco. O Marcos, que antes não comia carne mas agora passou a comer frango, pergunta ao Tiago se este sente alguma falta. Este diz que não. Aliás, acho que ele (Tiago) secretamente ficou desiludido por eu também não ser vegetariano.

Chegamos ao leito do rio, e por alguma razão que me escapa seguimos por um percurso sui-generis e um pouco complicado para quem está carregado de material. Vou ter que molhar o corpinho! Assim foi, mas o Tiago e o amigo ajudam com a mala. 🙂

Chegamos a uma pequena ilha de rochas e fazemos mais uma sessão de gravação. O tempo agora abriu e está muito agradável.  Os dois vão para a água e eu entro um pouco com o intuito de fazer um ‘shot’ em video da situação. Sinto-me na obrigação de ir tomar banho também, apesar de estar com uma atitude bem fóbica de germes, batérias, vírus ou vermes que possam existir na água.  

A conversa segue o seu rumo e discutimos a experiência de tomar substâncias alucinogénicas – ao qual parece sou um total novato. Olho para o lado e vejo um cano, o amigo ri-se e suspeita que seja um esgoto. Sempre fóbico, eu pergunto se a água é limpa? Ele diz:

-Limpa, limpa, nunca é!

Mas diz que nunca passou mal, talvez tenha apanhado um verme ou outra coisita qualquer.

Saímos, mas desta vez é mais atribulado. Punho mal o pé, e caio de costas numas rochas. Felizmente nada ficou  muito molhado do equipamento e fico só com umas marcas no pé para lembrança.

Chegamos a casa, tomamos um duche e jantamos. Ficamos o resto da noite a falar. 

TIAGO COSTA

Em meados de novembro passado fazia um calor forte no interior. Estava na cidade de Tietê, minha cidade natal, cerca de duas horas a oeste de São Paulo. Lembro de estar em casa, do ar seco da época e que sons ao redor chamavam-me atenção. O mais particular deles era o forte som das cigarras.

Me interessou captá-los e imaginei-me em uma situação de gravação de campo no meio da mata que adensa há alguns metros de casa, dando ênfase às histórias sonoras das cigarras que intensamente pronunciavam-se naquele novembro quente.

Vinha escutando alguns trabalhos bem interessantes utilizando microfones binaurais e comecei a sondar os colegas que utilizavam desse mecanismo em seus trabalhos. Foi quando entrei em contato com o Rui.

Rui está desenvolvendo uma pesquisa sobre arte sonora brasileira e para isso entrevista e documenta uma série de artistas que trabalham com som. Parte do seu processo consiste em passar algum tempo com eles, a documentar o que costumam fazer ou projetar intervenções. Explicando minhas intenções, Rui se interessou e me convida para realizarmos uma prática pelo interior.

Por motivo de agenda nosso encontro precisou ser marcado alguns meses depois da conversa, e infelizmente as cigarras não apresentavam-se mais sonoramente como antes.

De qualquer forma, mantivemos a intenção do encontro e durante o mês de janeiro conseguimos combinar um final de semana para realizar a vivência.

Fomos para Tietê no dia 29 de janeiro e o passeio sonoro aconteceu em duas etapas. A primeira logo ao chegarmos à cidade. Munidos com o gravador e microfones binaurais auriculares, visitamos os arredores da mata nas proximidades do bairro Seis Irmãos.

Antigamente aquela região tinha algumas poucas chácaras, e hoje, mesmo que tenha dado lugar ao perímetro urbano, ainda mantém uma considerável área verde nativa – parcialmente nativa, haja vista a presença de eucaliptos e tubulações em determinados pontos que despejavam esgoto a céu aberto no Ribeirão da Serra.

ribeirão da serra

Nessa caminhada realizamos um primeiro teste com a gravação binaural e encontramos uma narrativa a ser efetuada no dia seguinte. A narrativa consistiu em enfatizar os “primeiros” sons da manhã, realizando o passeio pelo perímetro urbano até algum momento que adentraríamos na mata para uma apreciação mais contemplativa.

Além da mata, alguns sons urbanos durante o passeio foram registrados. Também ocorreu dentro de um carro a caminho do próximo campo de gravação. Decidimos na hora aproveitar e registrar nossa viagem que contou com uma breve chuva, sons mecânicos do carro e nossas conversas casuais.

(Gravação de Rui Chaves // Usar fone de ouvido)

A segunda etapa aconteceu na cidade vizinha, Cerquilho. Este era um plano paralelo às cigarras e foi realizado às margens do rio Sorocaba. Lugar com menor intervenção humana e de correnteza forte, exigia apoio de alguém que conhecesse o local. Convidei meu amigo Marcos para nos acompanhar. Ele praticou canoagem e frequenta o trecho regularmente – além de construir uma relação de particular proximidade com o rio. Durante a viagem ele nos conta sobre a vivência que teve ao passar uma noite à beira do rio apenas com sua rede. Relatou como a experiência sonora noturna mexeu com sua percepção.

Segue seu relato.

“Uma vez eu vim dormir aí no rio.. na rede, e durante o dia o som da água é harmônico, mas a noite ele se torna muito intenso. E por estar de noite e nossa percepção ficar mais aguçada, mais alerta, porque pode ter algum animal perto, então qualquer barulho a gente já fica mais alerta. E teve horas que a experiência do barulho da água se tornou tão intenso que chegava até a alterar a consciência.. era incrível .. porque é um barulho constante, né.. a correnteza é constante.. e se você não se sentir preso você se liberta.”

(Gravação de Tiago Costa // Usar fone de ouvido)

O registro sonoro que foi feito naquela tarde captou um rio com forte presença na constituição daquele espaço acústico, tomando de cenário o conteúdo sônico quase por completo. Depois das gravações, demos um mergulho e conversamos até o final da tarde.